Corria o ano de 1970 e um jovem residente sentou-se ao lado da cama do paciente. Em sua prancheta, folhas de papel, absolutamente em branco, serviam-lhe para começar a escrever a anamnese daquela pessoa. Em uma hora, frente e verso daquele que seria o início do prontuário médico continham identificação, história e exame físico completo. Ao terminar, Dr. Aroldo sabia que seu Severino era nordestino, tomava banhos de rio e conhecia o aruá. E que, por vezes, teve intenso prurido após banhar-se no açude. Respondeu a várias perguntas de seu paciente. Durante todo período em que seu Severino esteve internado, inclusive quando transferido para a Cirurgia Geral para uma anastomose esplenorrenal, Dr. Aroldo o visitava e, nas conversas, oferecia a seu paciente aquilo que de mais importante um médico pode dar aos doentes: esperança. Seja de qual tipo for é sempre válida, até mesmo para uma digna finitude. Durante os três anos restantes de residência, acompanhou seu Severino no ambulatório, recebeu singelos reconhecimentos de gratidão, como rapadura e bordados cearenses. Ao se despedirem, a emoção tomou conta de ambos e da esposa de seu Severino. Quem sabe o paciente encontraria algum dia, novamente, seu médico?
Passaram-se 45 anos e, olhando fixamente a tela do computador, o plantonista da emergência registra objetivamente, em 10 minutos, a história e o exame físico de um idoso, de 92 anos. Sem saber, por não ter perguntado, estava diante de um velho colega, que ao Dr. Bruno, pergunta: “Meu médico?”.
˗˗ Não. – responde o plantonista, que logo vai avisando…
˗˗ O senhor precisa ficar internado, e como não há vaga, será acompanhado aqui pela “equipe”. Vamos fazer uns exames e só depois teremos a conduta. Agora tenho que ver outro paciente, mas volto. ˗˗ completa o médico.
Passados 30 minutos, um familiar procura pelo Dr. Bruno e é atendido pelo Dr. Pablo, já que o primeiro já não estava mais disponível. E assim, sucessivamente, o idoso foi visto pelas doutoras Karina, Angélica e Giovana. Todos, ao serem perguntados, diziam que tinham que consultar o prontuário eletrônico. Preocupados, familiares tentaram inutilmente procurar por um médico que “assumisse” seu ente, a essa altura na UTI, onde outra “equipe” tomaria conta do “caso”. No livreto de credenciados do plano de saúde, raros eram os nomes de profissionais; os especialistas eram “pessoas jurídicas”. Um responsável geral pela “equipe” dispunha quatro vezes na semana, da parte da manhã, para discutir com as “equipes” os “casos”. Quando acessível, um familiar conseguia algumas informações técnicas, com termos incompreensíveis e assustadores.
Indubitavelmente, a primeira história demonstra uma relação entre pessoas. Entre uma parte enfraquecida, temerosa, insegura; e a outra, que detinha a capacidade de atenuar todos esses sentimentos, através de uma relação humanizada, amiga, solidária e, nem por isso, não profissional. Uma relação médico-paciente de verdade. Já a segunda relata relações frias e tecnicistas. Embora não negassem as informações, os contatos, contudo, eram impessoais. Informavam, mas não se comunicavam, simplesmente por desconhecerem às necessidades da outra parte.
Nenhuma reflexão sobre o assunto poderia deixar de considerar algumas razões da fria relação com o velho médico e seus familiares: proliferação de escolas médicas que formam técnicos e não médicos, na acepção da palavra “técnicos”, identificados pelas fontes pagadoras de seus serviços como pessoas jurídicas; estimulação ao abandono precoce da medicina geral em prol de procedimentos que remunerem melhor e, o pior, não pelo desempenho, mas pela quantidade; a descontinuidade dos cuidados, já que o diagnóstico é feito por uma “equipe”, quem trata outra e quem acompanha, uma terceira; múltiplos empregos e deslocamentos frequentes para locais distintos, que consomem enorme tempo que deveria ser dedicado aos pacientes, entre outras.
Nunca estivemos tão capacitados a salvar e prolongar vidas e eliminar sofrimentos. Por outro lado, há um distanciamento dos profissionais de saúde em relação aos seus pacientes. Os tempos atuais não permitem mais que a relação médico-paciente esteja alicerçada nos moldes sacerdotais, baseada na tradição Hipocrática, em que o médico assume uma postura paternalista, passando a comandar, em todos os seus passos, o tratamento, não levando em consideração a opinião do paciente. Também não há mais espaço para o modelo engenheiro, que transfere todo o poder de decisão para o paciente. Hoje, o médico deve ter uma relação baseada no modelo colegial, em que compartilha igualitariamente as decisões com seu paciente, ou no modelo contratualista, preservando sua autoridade e assumindo a responsabilidade das decisões técnicas. Todavia, é dever do médico permitir aos pacientes participações ativas nos processos decisórios. Afinal, nenhuma relação médico-paciente será humana e justa se os cuidados oferecidos não tiverem o paciente como núcleo. Ou seja, mais do que nunca, os cuidados precisam estar centrados nos pacientes.