Ao longo da história, algumas profissões foram consideradas tradicionalmente masculinas, como é o caso da Medicina. Para as mulheres – por muito tempo impedidas de estudar, tendo seu intelecto subestimado –, restava somente o sonho de poder, um dia, atuar nessas áreas e construir uma carreira profissional.
Com o tempo e com a ajuda do Movimento Feminista, as mulheres passaram a mudar esse cenário, ultrapassando os limites impostos pela sociedade. Desde então, na Medicina, é possível observar mulheres se tornando cirurgiãs, pediatras, cardiologistas etc.
No Brasil, além da crescente predominância feminina na população geral, também é possível observar uma maior presença das mulheres no mercado de trabalho. A ascensão da presença feminina também está refletida na Medicina brasileira – fato que pode contribuir para a evolução da profissão e qualidade da assistência.
Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, comemorado em março, a matéria principal da segunda edição da Revista DOC, em 2019, contou com a participação de cinco médicas que apresentam seu olhar a respeito da presença das mulheres na Medicina. Confira, ainda, dados sobre a evolução da presença feminina na carreira médica, destaques sobre contribuições importantes feitas por mulheres na profissão e pioneiras que marcaram a história da Medicina.
Feminização da Medicina
Atualmente, os homens ainda são maioria entre os médicos brasileiros. Os dados da Demografia Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em 2018, apontam que, dentre os 414.831 profissionais da Medicina em atividade, 225.550 são homens (54,4%) e 189.281 mulheres (45,6%). Além disso, em apenas dois estados brasileiros a presença feminina entre os médicos é maior que a masculina: Alagoas, com 52,2%, e Rio de Janeiro, com 50,8%.
Contudo, essa diferença na distribuição de médicos e médicas vem caindo a cada ano – fato que aponta para uma feminização da Medicina no país. No Brasil, a população feminina vem crescendo e, desde 2010, ela é maior que a masculina. Além disso, na Medicina, desde 2009, entre os novos médicos registrados, há mais mulheres que homens. A presença feminina predomina entre os médicos mais jovens, sendo 57,4%, no grupo até 29 anos, e 53,7% na faixa entre 30 e 34 anos.
Nesse contexto, a cardiologista pediátrica Caren Viana destaca que o processo de feminização da Medicina não tem como único fator o emponderamento feminino, apesar de contribuir. “Acredito que essa mudança no perfil demográfico do país seja um fator importante nessa situação.
Por conta do aumento de número das mulheres na Medicina, temos conquistado sim um espaço maior na profissão. Porém, existem diferenças nas especialidades. Enquanto em algumas delas as mulheres se encontram em peso, em outras é mais difícil observar a presença feminina”, analisa.
Karina Oliani, especialista em Medicina de Emergência e Resgate em Áreas Remotas, considera que, assim como em outras áreas profissionais, a Medicina vem abrindo espaço para as mulheres na profissão. “Não serei hipócrita a ponto de negar que existe discriminação de mulheres em diversas áreas dentro do universo da Medicina, mas vejo que o progresso está acontecendo. Consigo observar no dia a dia e na presença em congressos e eventos na área que a presença feminina vem aumentando”, destaca.
A pediatra Carolina Monteiro acredita que as mulheres vêm conquistando seu espaço de maneira expressiva não apenas na Medicina, mas em todas as profissões. “O movimento de feminização da Medicina vem tomando força na última década, reforçado também pelas tendências de empoderamento feminino. De fato, as mulheres estão, cada vez mais, ocupando cargos de liderança e sendo reconhecidas por seu excelente trabalho no meio médico”, pontua.
Para Gláucia Moraes, presidente da Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa (FSCLP) no biênio 2016-17 e atualmente coordenadora do programa de pós-graduação em Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Medicina pode ser resumida como o ato de cuidar do outro – uma característica tipicamente feminina. “A mulher tem mais capacidade, na maioria das vezes, de entender os seres humanos de forma plena, não apenas em sua condição física, mas também mental e espiritual. Creio que essa seja a razão da crescente presença feminina na Medicina”, avalia.
Além disso, a cardiologista reforça que as mulheres devem buscar seu espaço em qualquer profissão, não somente na Medicina; espaço esse que será alcançado por dedicação, por qualificação profissional e, no caso da Medicina, pela capacidade de aceitar os desafios que a vida médica impõe diariamente, obrigando-as a superar as próprias limitações.
Em busca do equilíbrio
Na Pediatria, as mulheres são maioria, representando 73,9% do total de 39.234 especialistas que atuam na especialidade. Para Carolina, a escolha das mulheres por essa especialidade pode ser justificada pela facilidade que as mulheres possuem em criar vínculo com o paciente e seus familiares. “Porém, penso que somos capazes de exercer com primazia qualquer especialidade que quisermos”, sustenta.
Tendo como pré-requisito a Pediatria, a Cardiologia Pediátrica também possui grande presença feminina. Apesar disso, Caren acredita que na subespecialidade a diferença entre homens e mulheres seja menor, principalmente na área intervencionista, onde é observada uma maior presença masculina.
A otorrinolaringologista e presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM), Fátima Alves, constata que em sua especialidade a presença feminina ainda é menor que a masculina. “As mulheres representam 42,67% do total de inscritos na Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF). Mas é possível que observemos uma participação cada vez mais significativa das mulheres nessa especialidade futuramente”, considera.
Na Cardiologia, entretanto, a presença feminina ainda tem um longo caminho a ser percorrido para se igualar à quantidade de homens que atuam na especialidade. Do total de 15.516 cardiologistas brasileiros, apenas 29,9% são mulheres.
Gláucia argumenta que, se levado em consideração o número de professores e coordenadores de programas de pós-graduação, a proporção homens/mulheres é ainda menor, o que mostra que o crescimento de mulheres na Cardiologia tem velocidade menor do que em outras especialidades. “Em contraponto, a proporção de mulheres médicas, como um todo, vem aumentando expressivamente nas últimas décadas, saltando de 22%, em 1910, para 45,6%, em 2017, com predominância das idades mais jovens”, constata.
O olhar feminino
Em artigo publicado na Jama Intern Med, os autores do estudo Comparison of Hospital Mortality and Readmission Rates for Medicare Patients Treated by Male vs Female Physicians compararam as taxas de mortalidade em 30 dias e de readmissão dos pacientes atendidos por médicos homens versus mulheres. Foi concluído que os pacientes que recebem atendimento de mulheres tiveram taxas menores de mortalidade no período de análise. Alguns autores também destacam que o olhar feminino pode ser responsável pela harmonização da relação médico-paciente em diversos aspectos.
Para Fátima Abreu, esses achados sugerem que as diferenças nos padrões de prática entre médicos do sexo masculino e feminino, como sugerido em estudos anteriores, podem ter implicações clínicas para os resultados dos pacientes. “Além disso, outros estudos apontam que médicos do sexo feminino são mais propensos à prática da Medicina baseada em evidências, realizam exames padronizados e fornecem mais cuidados centrados no paciente”, reforça.
Caren Viana concorda que a presença feminina agrega muito à profissão e que o olhar feminino é um diferencial no atendimento aos pacientes. “Nós temos bem aflorado esse lado de cuidar. Não que os homens não tenham, mas são características marcantes nas mulheres. Geralmente, somos observadoras, o que ajuda a traçar uma estratégia eficaz e com uma abordagem mais delicada quando necessário. O paciente consegue perceber isso, o que contribui para uma melhor relação médico-paciente”, considera a pediatra.
Carolina Monteiro acredita que o olhar diferenciado da mulher para o paciente faz com que este se sinta mais acolhido. “Características como empatia e determinação fazem com que as mulheres se destaquem em relação aos homens nessa área e no mercado de trabalho como um todo”, avalia.
De acordo com Gláucia Moraes, as mulheres conseguem apreender e entender melhor a doença em seu sentido mais amplo, que não se resume a sua dimensão física. “Além disso, as mulheres são capazes de minimizar o sofrimento agregado ao processo de doença por ter, habitualmente, maior facilidade em lidar com as emoções e demonstrar maior solidariedade, compartilhando com os pacientes os múltiplos aspectos do adoecimento”, define.
Associação valoriza o trabalho de mulheres na Medicina
Fundada em 1960, a Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM) – filiada à Medical Women’s International Association (MWIA) – apoia projetos científicos relacionados à saúde e o bem-estar, de caráter regional nacional e mundial. Desde 2016, Fátima Alves ocupa a presidência da instituição e irá se manter no cargo até 2020. Para a otorrinolaringologista, esta tem sido uma experiência única em sua vida profissional.
As principais áreas de atuação da instituição são:
- Trabalhar pela igualdade de direitos entre médicos e médicas em todos os aspectos da carreira;
- Estimular maior participação das mulheres jovens na associação;
- Promover a oportunidade de encontro técnico-científico, cultural e social;
- Incentivar as mulheres a cuidarem bem de si para melhor acolher o outro;
- Discussão da importância das doenças que se apresentam de forma diferente entre homens e mulheres, bem como a elaboração de projetos de pesquisa nessa área, que poderão contribuir com desfechos mais adequados;
Participação de campanhas pelos direitos das mulheres, contra a violência e o assédio sexual.
Superando obstáculos
Muitas vezes, as mulheres passam por situações de dificuldade e preconceito quando se encontram em um ambiente tradicionalmente masculino, o que é o caso de algumas especialidades na Medicina. Na Ortopedia e Traumatologia, por exemplo, os homens ainda são maioria, e as mulheres representam apenas 6,3% dos 15.598 especialistas. A presença feminina é ainda menor na Urologia, com apenas 2,2% de mulheres dentre os 5.328 especialistas.
Karina Oliani explica que, durante sua trajetória, já passou por algumas situações em que foi preciso saber contornar e respirar fundo para reagir de forma que a situação evoluísse da melhor maneira. “Acho que qualquer pessoa que se encontra em situação de minoria passa por situações assim na vida. Por outro lado, acredito que ‘bater de frente’ nunca é a melhor saída; somos seres racionais, portanto, usar a inteligência e a resiliência que nos foram dadas mostra a habilidade e o preparo para lidar com esses desafios”, sustenta.
Em sua atuação na Pediatria, Carolina diz que nunca presenciou conflitos preconceituosos contra mulheres. Contudo, dentro da Terapia Intensiva Neonatal, algumas dificuldades foram encontradas ao longo do caminho. “Trata-se de um ambiente mais hostil, em que já passei por alguns momentos mais delicados em relação a outras especialidades, mas sempre soube contorná-los com respeito e qualidade técnica”, relata.
Fátima Alves afirma nunca ter observado qualquer discriminação ou resistência, nem por parte de outros profissionais, nem por parte dos pacientes. “Entretanto, já ouvi relatos de colegas mais experientes que romperam barreiras em especialidades nas quais as mulheres não atuavam, principalmente em áreas cirúrgicas, e que conquistaram espaços não habituais na carreira. Acredito que, em qualquer situação, devemos exercer nosso trabalho com ética, dedicação e profissionalismo”, explica a otorrinolaringologista.
Um caminho a ser trilhado
Caren Viana e Carolina Monteiro concordam que, apesar de observarem uma presença feminina importante na Medicina, ainda há muito o que melhorar nesse aspecto. Mesmo com o número crescente de mulheres em diversas especialidades, as pediatras avaliam que algumas áreas ainda são dominadas pela presença masculina – como Ortopedia e Urologia – e que, nessas especialidades, ainda há um espaço maior a ser conquistado pelas mulheres.
Para Fátima, é preciso que exista um equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, licença-maternidade, progressão na carreira e a orientação de jovens médicas e estudantes. “Jovens que desejam cursar Medicina devem perseguir seus sonhos pessoais e profissionais, além de atuar no fortalecimento das entidades representativas, buscando alinhamento com outras entidades médicas na luta por melhorias do exercício da Medicina e da saúde da população brasileira. A ABMM estimula as futuras médicas a participar com ideias, projetos, pesquisas e temas a serem desenvolvidos”, sustenta a otorrinolaringologista.
Como mensagem de apoio às jovens médicas e aquelas que já estão na profissão há algum tempo, Karina Oliani define que optar pela Medicina é uma das maiores e melhores escolhas que podem ter feito na vida, uma vez que a alegria da recompensa em poder fazer a diferença na vida do outro não tem preço.
Entretanto, a profissional alerta: “busque sempre o equilíbrio entre trabalho e família, entre consultório, consultas e voluntariado. É preciso reservar um tempo para cuidar de si mesma e da própria saúde”.
Glaucia Moraes reforça que as mulheres devem sempre dar o melhor de si na profissão, buscando melhor remuneração e valorização do papel exercido na sociedade. “É dessa forma que as mulheres poderão obter mais cargos de liderança numa sociedade médica comandada majoritariamente pelo sexo masculino. As dificuldades existem, principalmente para conciliar a vida profissional e a pessoal com sucesso. Porém, não podemos desistir jamais”, define.