Desde a criação da primeira escola de Medicina no Brasil, em 1808, pelo príncipe regente Dom João, muita coisa mudou na educação médica do país. Atualmente, a Medicina brasileira é considerada uma das mais avançadas no mundo, sendo o Brasil o país responsável pela criação de vários programas de saúde reconhecidos Internacionalmente, como o Mais Médicos, Saúde da Família e o Programa Nacional de Imunização. Porém quando o assunto é ensino, a carreira médica brasileira ainda é pauta de discussão.
Decisão do Governo Federal
Em abril de 2018, o Governo Federal suspendeu a abertura de novos cursos de Medicina no país nos próximos cinco anos. A medida foi solicitada pela Associação Médica Brasileira (AMB) e por outras entidades médicas, sob a legação de baixa qualidade na formação do jovem médico.
Segundo o presidente da AMB, Lincoln Ferreira, com a mudança, o país irá ganhar tempo para pensar em soluções para os problemas do ensino médico brasileiro. “Na questão da moratória de abertura dos cursos de Medicina com o Governo Federal, também foi instituída uma comissão – da qual a AMB faz parte – que estudará a reorganização da formação médica nestes próximos cinco anos, propondo todos os requisitos necessários para o funcionamento de uma escola médica nos termos adequados no Brasil, como a exigência de hospitais-escolas e ambulatórios próximos ao ensino”, resume.
Mais quantidade, menos qualidade
Atualmente, existem 303 escolas de Medicina no Brasil, um número consideravelmente alto, quando comparado aos de países como a China, que possui 150 faculdades para 1,3 bilhão de pessoas. No ranking, o país só perde para a Índia, que possui 381 escolas médicas para uma população de mais de um bilhão de pessoas.
Pelas projeções de novos formandos no Brasil, o índice de novos diplomados deve crescer nos próximos anos e, em 2020, chegar a 15 médicos por 100 mil habitantes. Porém, apesar do crescimento do número de escolas, a qualidade do ensino não acompanhou esse quadro.
Os resultados dos últimos exames realizados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) revelam despreparo por parte dos jovens médicos. Em 12 das 13 edições do exame, mais da metade dos participantes acertaram menos de 50% das questões.
Dos 2.636 médicos que realizaram a prova, 88% dos recém-formados não sabiam interpretar o resultado de uma mamografia, enquanto 78% erraram o diagnóstico de diabetes. Para Ferreira, as notas do exame são uma evidência objetiva da atual situação do ensino médico brasileiro. “A qualidade do ensino é a questão chave desse despreparo.
Por isso, a AMB demandou do Governo Federal a interrupção do processo de abertura irrefletida de novas escolas médicas. Nenhum país, não só o Brasil, consegue formar mestres e doutores na velocidade em que foram abertas essas escolas médicas”, argumenta.
Por outro lado, o Governo alega que a abertura de cursos de Medicina é necessária devido à falta de médicos no Brasil, que possui uma das menores médias de médicos por habitantes entre os países: 2,1 médicos a cada mil habitantes. Segundo o presidente da AMB, o problema não está na falta de médicos e sim na ausência de uma política de fixação de médicos.
“Para um médico trabalhar, é necessária uma estrutura, pois, sem condições de trabalho, ele se vê reduzido à condição de uma testemunha privilegiada e absolutamente angustiada do comportamento humano. Ele vai presenciar mortes e doenças evitáveis, sequelas e sofrimento, sem dispor das condições adequadas de trabalho”, argumenta.
De acordo com José Octávio Costa, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), além da política de fixação de médicos, é importante que seja garantido o acesso de qualidade ao atendimento primário à saúde à população em geral.
“Entendo que a criação de novos cursos de Medicina venha acompanhada de avaliações periódicas das ferramentas de ensino, grade curricular atualizada com o mercado, capacitação de docentes e estudantes e alunos egressos, para que progressos possam ser feitos e a prioridade seja a prestação de serviço de alto nível”, pondera.
Outro fator que deve ser considerado é a desigualdade na distribuição geográfica. No Brasil, a Região Sudeste concentra a maior parte das escolas médicas, com 134 instituições, já o Norte possui apenas 27. Consequentemente, o Sudeste reúne 55% dos médicos especialistas do país, e menos da metade dos médicos brasileiros são responsáveis pelo atendimento dos outros 5.543 municípios do país.
Situação das residências médicas
No início de 2018, o Jornal da Medicina, publicado pelo CFM, revelou que 40% das vagas de residências médicas (RM) estão desocupadas. Segundo a publicação, dois fatores são responsáveis por esse quadro.
O primeiro é a desvalorização do posto de preceptor nos programas de RM, que não são remunerados para exercer a função. A segunda questão é o valor da bolsa do residente, considerado baixo, levando em conta o esforço despendido pelo profissional.
De acordo com o MEC, o aumento expressivo das vagas de cursos de Medicina trará um reflexo na maior procura por residências médicas. “Em 2011, tínhamos 13.768 vagas para residentes do primeiro ano (R1) e, atualmente, estamos com 23.137.
O crescimento foi ordenado e de acordo com critérios de regulação estabelecidos pela legislação brasileira, primando pelo princípio da qualidade a ser oferecida pelo programa autorizado”, informa. Segundo o órgão, a taxa de ocupação varia conforme os programas.
“São mais de 100 especialidades oferecidas. Dessa forma, temos programas como os de Pediatria, com taxa de ocupação superior aos 90%, mas outras especialidades pouco passam de 60%. Inúmeros fatores são contribuintes para uma procura maior ou menor por determinada área, desde vocação dos estudantes até apelos do mercado, que variam com o passar dos anos”, sustenta.
Politização do ensino
Atualmente, certos especialistas afirmam que as universidades têm tratado os alunos como uma forma de negócio, priorizando os lucros e não a educação, caracterizando a “politização do ensino”.
Para Lincoln Ferreira, o capitalismo se sobrepôs à qualidade do ensino. “A verdade é que o ensino virou um balcão de negócios com o aval dos governos que administraram o Brasil nos últimos 20 anos, e a qualidade ficou em segundo lugar.
Temos 60% das escolas médicas particulares, cobrando alto por aluno”, resume. Com mensalidades que variam de R$3.700 a R$12.200, as escolas médicas oferecem estrutura precária, que não justifica o valor cobrado.
Ferreira acredita que o problema não está em obter lucro com as escolas, mas, sim, em não oferecer a estrutura adequada aos profissionais. “São mensalidades bastante caras, um investimento alto, essencialmente, sem ter compromisso com o ensino, para que um médico seja formado adequadamente, do ponto de vista técnico, ou seja, capaz de exercer a profissão, do ponto de vista ético, isto é, usar seus conhecimentos para o bem do ser humano e, finalmente, no âmbito humanístico, já que do outro lado há um ser humano que tem necessidades próprias e que merece ser tratado adequadamente”, define.
Segundo Costa, alguns cursos estão localizados em cidades distantes de centros de referência em ensino ou saúde e não possuem infraestrutura adequada para que o aluno realize o estágio probatório, sem ter certeza sequer de uma supervisão contínua de avaliação do estágio alinhada com o currículo acadêmico.
“E se a pessoa paga altas prestações por alguns anos e, depois, a faculdade não vai para frente? Os valores cobrados são muito altos pela prestação de serviço acadêmico improfícua ofertada. Tenho receio sobre qual será a formação recebida por esses futuros médicos”, analisa.