Como desvincular os problemas vistos no trabalho da vida particular?
Em A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição humana, escrito pelo psiquiatra Sergio Zaidhaft, explica-se que a relação do médico com a morte sofreu diversas modificações ao longo da história. Até o século XIX, a única função do médico era a de espectador, algo que começou a ser modificado a partir do século XVIII, com o desenvolvimento tecnológico e científico e a institucionalização do doente no hospital.
Ainda assim, a morte é um assunto difícil a ser tratado pelo médico, que deve aprender, ao longo da carreira, a abandonar os problemas e o sofrimento alheio vistos em seu local de trabalho.
“É algo que vem com o tempo. Quando estamos no início da carreira, temos mais dificuldade em desvincular o trabalho da vida pessoal. O tempo, porém, faz com que nos acostumemos a não aprofundar tanto os laços com o paciente. E que fique claro que existe uma grande diferença entre não aprofundar laços e não se preocupar com eles. É uma linha tênue, mas o médico precisa se adaptar para não sofrer”, revela a oncologista Sabrina Chagas.
Por sua profissão, Sabrina está acostumada a lidar com o câncer e relata que traz aspectos de sua personalidade para a relação médico-paciente. “Eu abraço meus pacientes e dou muito carinho. Acho importante esse contato físico.
Mas é preciso, depois de sair do consultório (mesmo tendo esse envolvimento e carinho com o paciente) voltar para a própria vida. É um trabalho mental de impedir que o que vemos no ofício não fique retornando aos pensamentos e investir nas atividades diversas da vida, como exercícios físicos, que ajudam a clarear a mente”, afirma.
Já para o psiquiatra Daniel Sócrates, é necessário manter a neutralidade (conseguida por meio de técnica e habilidade) ao tratar as pessoas que buscam auxílio médico, sem perder a empatia necessária. “A formação em Psiquiatria contempla o treinamento para que consigamos ouvir um problema, colocarmo-nos no lugar do paciente, sermos empáticos com seu sofrimento sem, contudo, perdermos a neutralidade necessária para a boa condução do caso”, pontua.
Sócrates ressalta que, além disso, é preciso aprender a lidar bem com as diferentes frustrações da carreira médica: de a ciência ainda não ter descoberto a cura de algumas doenças, de o paciente, em alguns casos, escolher não se tratar, da falta de recursos para trabalhar adequadamente em determinados cenários e, ainda, de notar que nada pode ser feito em determinados casos. “Todos sofrem com a morte. É um mito pensarmos que o médico não sofre e não se entristece quando o paciente falece. O preparo da formação e a experiência podem ajudar a minimizar um pouco do impacto dessa dor, mas não a elimina”, sustenta.
A gratificação que a Medicina traz
Sabrina vivenciou uma experiência que mudou sua percepção que sobre a doença que tanto estudou, estuda e combate diariamente. Seu pai, mastologista, precisou lutar contra um câncer de mama.
“Eu vivia dando conselhos sem ter noção da profundidade dos problemas vividos pelos pacientes. Nós sabemos o que eles sentem, sabemos como resolver, mas não sentimos na própria pele. O fato de meu pai ter sido afetado pela doença me fez mudar o entendimento que eu tinha sobre ela. Foi muito sofrido e difícil, mas, por outro lado, me ajudou a ter uma nova percepção das queixas dos pacientes e até de seus olhares – porque, muitas vezes, eles não falam o que estão sentindo com a real profundidade, seja por medo de o médico não ouvir ou não ter interesse, medo de não receberem o tratamento por causa dos sintomas etc. Hoje, em meu consultório, lembro-me de muito do que meu pai sentia e não falava, o que me trouxe maior percepção quanto à doença e em muito acrescentou a minha relação médico-paciente”, relata.
Segundo a oncologista, quando fala de sua profissão a alguém que não a conhece na posição de médica, em seu consultório, costuma receber olhares tristes, de pessoas que acreditam que seu dia a dia é marcado por momentos difíceis, algo que a especialista nega ser verdade.
Há momentos de extrema tristeza, como quando um paciente jovem é acometido por uma doença muito agressiva e a médica percebe que não está conseguindo tratá-la do jeito que gostaria. “Porém, momentos gratificantes se repetem várias vezes. Mesmo quando o paciente está sofrendo muito, angustiado com a doença, é capaz de ver o esforço do médico e de se sentir grato pelo carinho, tratamento e suporte que o profissional dá.
Ainda que eu saiba que a patologia não está caminhando do jeito esperado, por ser agressiva e não responder ao tratamento, meu papel é trabalhar o máximo e, muitas vezes, recebo sorrisos de agradecimento e felicidade, que são a parte gratificante da profissão”, resume.
Reportagem por Bruno Bernardino