Motivada pela própria trajetória de vida, com mais de 30 anos dedicados à Medicina, a cardiologista pediátrica Rosa Célia Pimentel Barbosa conta em entrevista especial à Revista DOC como se tornou uma referência na área da Saúde. Alagoana de Palmeira dos Índios, a fundadora e diretora do Pro Criança Cardíaca é uma das médicas mais espeitadas do país e sua nobre iniciativa já rendeu diversas homenagens e premiações.
A médica fala, em conversa descontraída, sobre a sua carreira, desde os obstáculos que superou para buscar a especialização no exterior até à essência da profissão em “ajudar o próximo”. Nos próximos meses, a cardiologista concentrará ainda mais esforços no levantamento de capital de giro para fazer funcionar seu mais recente empreendimento: o Hospital Pro Criança Jutta Batista. Leia, a seguir, a entrevista exclusiva com Rosa Célia:
O que a fez escolher a Medicina dentre tantas profissões?
Fui criada em um colégio interno no Rio de Janeiro durante 11 anos, que também era um orfanato. Aos
16 anos, comecei a me interessar pelas pessoas que estavam doentes. Quando alguma criança adoecia, eu ficava preocupada e queria cuidar dela. Foi quando a diretora do colégio, que era como se fosse uma mãe para a gente, começou a ter problemas no coração. Eu controlava os remédios dela. Lembro-me que, uma vez, sem querer, entornei o remédio dela, o único que tinha, mas que não servia para quase nada. Imaginei que ela fosse morrer (risos). Nessa época, me dei conta de que realmente queria cuidar das pessoas. O orfanato onde morei e estudei não era um orfanato comum. Tínhamos contato com pessoas da alta sociedade e com políticos. Meus pais só podiam me ver uma vez por ano. O externato era um colégio de aplicação da PUC também para alunos da rede particular. Tínhamos contato com professores renomados de piano, de balé etc. E lá tínhamos responsabilidades, pois cuidávamos das crianças menores. Era a nossa casa. Quando terminei o segundo grau, disse a mim mesma: “Vou fazer Medicina de qualquer jeito”. Pensei que eu ia continuar morando no colégio quando meus pais vieram me buscar e voltei para a minha casa em São João de Meriti. Chegando lá, as coisas estavam difíceis. Tentei arranjar emprego, mas não conseguia nada. Foram 11 anos “fora do mundo”. Aí, consegui morar na casa de uma das benfeitoras do colégio para prestar o vestibular.
Como foi seu ingresso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)?
No final do ano, fiz a prova, mas não passei, fiquei como excedente. Fiquei deprimida, porque as pessoas me desanimavam: “Vestibular para quê? Você é mulher, pobre, não vai conseguir emprego mesmo”. Fiquei desesperada, mas pensei que não gostaria mais de morar na casa dos outros porque eu cobrava muito de mim. Mas dei sorte, pois o marido dessa benfeitora era advogado da Casa de Saúde Dr. Eiras. Então ele pediu ao gerente, o senhor Plácido, se podia arranjar um emprego para mim e se eu podia morar lá. Como não tinha ninguém morando na Casa de Saúde, consegui o emprego e morava no porão. Portanto, trabalhava durante o dia e à noite estudava para o vestibular, sem cobrança alguma, por dois meses. Chegou o final do ano e prestei vestibular de novo. Imagina o pânico: e se eu não passasse? Mas eu passei em 18° lugar para a UFRJ e continuei morando no mesmo lugar. Ao entrar na faculdade, vários caminhos se abriram.
Por quais desafios você passou durante o curso de graduação?
Tinha dificuldades para comprar livros, mas estudava na Biblioteca Nacional. De repente, fiquei doente. Peguei tifo quando já estava no terceiro ano da graduação. Um dos benfeitores do orfanato, o Tio Jaime, costumava me visitar e sempre me ajudava com cinco cruzeiros. Ele, que me conhecia desde pequena, tomou um susto com a minha doença. Ele perguntou a sua mulher se eu podia morar na casa deles e fui morar com eles em Botafogo enquanto esperava uma vaga em um pensionato. Eu ganhava cem cruzeiros, mesmo valor do pensionato. Não tinha como pagar. Até que, em um dia, esse meu tio postiço, no dia do aniversário dele, contou para mim que tinha um problema: estava com câncer. Alguns meses depois, ele faleceu. Eu pensei: “Agora eu preciso ir para outro lugar”. Foi quando a esposa dele, a Dona Zuzu, me disse: “Agora eu que não fico sem você”. Meus pais moravam muito longe e eu não tinha condições de ir e voltar da faculdade todos os dias. Condução de pobre era ruim desde aquela época e eu também não tinha dinheiro. A Dona Zuzu era um amor. Eu adorava Coca-Cola e ela sempre me oferecia o refrigerante geladinho. Então morei com essa senhora até o dia em que ela partiu. Ou melhor, nós duas nos cuidamos até o dia em que ela foi embora.
Quais as diferenças entre as residências médicas da sua época e as de hoje em dia?
O prédio da UFRJ, na Praia Vermelha (zona Sul do Rio), era um deslumbre. Havia disciplina e respeito. Os alunos levantavam quando os professores entravam em sala. Ficávamos ao lado do professor querendo aprender cada vez mais. Éramos 180 alunos, sendo apenas 18 mulheres, mas com muito respeito. A faculdade era a casa da gente, mas não tínhamos a tecnologia de hoje. Por isso, não havia tempo para brincadeira. O professor Magalhães Gomes, mestre em Cardiologia, notou que eu tinha tanto interesse, que me ofereceu um curso pela Santa Casa, exclusivo para médicos formados. Lá fui eu, cheia de pose, e nem era formada ainda. Mas eu não queria falhar, então estudava cada vez mais. Acho que hoje as coisas ficaram muito mais fáceis. Isso não é bom. Em qualquer coisa que você faça, é preciso ter líderes, modelos. E não confundir firmeza com arrogância. A hierarquia faz muita falta hoje em dia.
Por que o interesse em escolher a Cardiologia?
Naquela época, cursávamos todas as especialidades médicas. Fiz Neurologia com o Dr. Ackerman e com Paulo Niemeyer. De repente, resolvi que queria fazer Cardiologia. Fiz dois concursos para hospitais públicos: um para Nefrologia do Estado e outro, para Cardiologia Geral e Terapia Intensiva, do Governo Federal. Durante um plantão, ninguém sabia como proceder em caso de cardiopatias infantis. Hoje em dia é muito comum, mas naquela época não era. Chegou um bebê ao hospital. Ele faleceu e ninguém sabia o porquê. A partir disso, decidi que queria me dedicar exclusivamente à Cardiologia Pediátrica.
Como foi a experiência de fazer especialização em Cardiologia Pediátrica em Londres?
Consegui contato com a médica Jane Sommerville, na Inglaterra, sem saber Inglês nenhum. Ela me disse: “Pela primeira vez recebo uma cardiologista interessada em cuidar de crianças, então vou te ensinar como conseguir dinheiro para vir para cá”. Eu tinha muito pouco dinheiro, mas fui até ao British Council prestar concurso. Não passei de primeira, porque não sabia inglês. Entrei em desespero e fui embora aos prantos, pois o requisito básico era saber o idioma. De repente, recebo uma ligação da secretária permitindo que eu fizesse a prova novamente. Ela me disse: “Venha tentar a prova de novo, porque a mulher do cônsul adoeceu e o cônsul que está chegando é novinho e não vai querer prejudicar ninguém”. Por que a moça da recepção foi falar isso pra mim? Olha que espetáculo! Chegando lá, o cônsul notou que eu não sabia falar Inglês. A primeira pergunta foi sobre as favelas: “What do you know about slums?”.Tentei responder o que era possível, desci e aguardei a resposta. Minutos depois as moças da recepção comemoraram comigo: “Você passou!”. Disse ao cônsul que não sabia falar Inglês, mas que tinha um Fusca que minha tia tinha deixado de herança e que venderia o carro para pagar um curso de Inglês. Mas uma das secretárias me disse para ir para a casa. Dias depois recebi uma carta dizendo que tinha sido aprovada e que eles pagariam dois meses de curso de Inglês. Foi inacreditável! Depois voltei para Londres apenas para fazer a especialização em Cardiologia Pediátrica. Não tinha de dar satisfação a ninguém. Meus pais não podiam me ajudar, então eu só queria estudar e tinha muitos sonhos.
O que a conduziu durante esse período?
Tenho uma religiosidade muito forte. Quando se perde um paciente, nos reunimos em equipe para responder aos questionamentos: a morte do paciente podia ser evitada? Houve erros? Dessa forma, aprendemos para não rescindirmos no mesmo erro e, assim, crescemos individualmente. Aos 11 anos fui para um orfanato. Estudava em um colégio onde também estudavam meninas ricas. Tive oportunidade de observar como a bailarina Dalal Achcar se portava. Esse estímulo não só intelectual, mas do “colorido”, faz você sonhar. As crianças hoje em dia perderam a noção de sonhar. Passam o dia inteiro na frente do computador e da televisão. Pra onde foram os sonhos? Talvez elas não almejem pelo fato de tudo estar ao alcance delas. Podia ter parado na metade do caminho, mas não parei. Nem por isso fiquei amarga, assumi muitas responsabilidades e não tenho mágoas com ninguém. Sempre fui respeitada e prestigiada, pois acreditava que estava fazendo a diferença. Você tem de brigar, sim, mas por causas, não por coisas.
Para tornar-se uma especialista foi preciso fazer concessões ou adaptações na vida pessoal?
Não permiti que nada nem ninguém me atrapalhasse. Sempre estudei muito e dei muitas aulas em congressos, além dos plantões em dois hospitais. Foi preciso ter muito foco, disciplina e abrir mão do lado social, das festas. Quando segui para o exterior, já tinha em mente que deveria estudar o tempo todo. Se não fosse embora, acabaria me tornando “escrava das pessoas”. Viajei para a Inglaterra com a bolsa de estudos que conquistei, com pouco dinheiro e com poucas roupas. Mas tinha muito foco e determinação. Sempre sonhei com coisas maiores e coloridas. Não dei ouvidos às pessoas. Diziam-me: “Por que você vai viajar? Vai largar o emprego público da sua vida no Hospital da Lagoa?”. Como não tinha completado dois anos na instituição, perdi a matrícula. Não sei como Deus me deu essa força, mas mesmo assim fui embora. Meu marido era alto funcionário público, no entanto, segui minha trajetória. Às vezes, visitava paciente às 2 da manhã e ganhei o apelido de “Dama da Madrugada”. Ia para casa, via meus filhos e depois visitava meus pacientes. Nunca dei a entender que minha profissão era uma obrigação. Meus filhos entenderam esse posicionamento. Sempre tiveram essa consciência desde pequenos e foram educados para cuidar uns dos outros. É preciso dar exemplo aos filhos. É um prestígio para a mulher, que tem a profissão como a minha e é chefe de equipe, tornar-se uma referência. Meu despertador toca todo dia às 6 horas e só vou dormir quando concluo tudo o que tinha para fazer. Nunca tive empregos, mas responsabilidades. Estou onde estou sendo útil e não tenho tempo para ter conversa fiada.
Já houve alguma situação, principalmente no início da carreira, em que você tenha percebido preconceito entre a classe médica? Como lidou com ele?
Naquela época, era comum o preconceito com uma mulher pobre e pequena, mas depois não houve mais nenhuma situação parecida. Quando fui para a Inglaterra, perguntavam a qual família eu pertencia. Não tinha sobrenome: eu era a Rosa Célia – e hoje sou uma “instituição”. Mas ao chegar à casa de convidados, eu sempre me colocava à disposição para ajudar em alguma coisa. Fui a primeira mulher intensivista do Hospital Miguel Couto. Mulheres devem ter postura e dignidade. Preconceito sempre existiu e vai existir. Lembro-me de ter ouvido que eu parecia um homem e que era diferente das outras mulheres. Naquela época, não havia muitas mulheres que se diferenciavam na Medicina. Várias vezes tentaram me dar rasteiras em eventos como congressos, mas nunca me fiz de vítima. No livro The four agreements (Os quatro compromissos), o autor Don Miguel Ruiz, também médico e cirurgião, cita quatro atitudes que você deve praticar na vida: seja verdadeiro com sua palavra; não se faça de vítima; não culpe o outro sem antes ter certeza; e faça o melhor sempre. Essa é a vida. Já risquei do meu vocabulário as palavras “e”, “se” e “acho”. A vida é um aprendizado e temos de fazer tudo para não perder a capacidade de ser feliz.
Como foi implantar o departamento pediátrico do Hospital Pro Cardíaco?
Em 1989, eu me aposentei do serviço público e não havia ainda o departamento pediátrico no hospital. Terceirizei meu consultório e segui para Boston em um ano sabático para me requalificar. Dessa vez, fui com a minha família. Passei seis meses de intensos estudos no Children’s Hospital Medical Center para me aprofundar em novas técnicas para o tratamento das doenças cardíacas da criança. Ao voltar para o Brasil, em 1990, reassumi minhas funções, sugeri a implantação do departamento pediátrico à direção do Hospital Pró-Cardíaco e instalei a clínica particular bem próxima do hospital, em Botafogo. Foi difícil, mas conquistamos nosso espaço. Criei um sistema chamado de “pacotes”, no qual incluía todos os procedimentos aos convênios para igualar os valores. Tanto faz se era aqui no Brasil ou na Europa, o preço era um só. Então pude atender desde convênios mais básicos até os mais caros. Em 1996, consegui realizar o sonho de criar uma clínica destinada aos menores carentes: o Pro Criança Cardíaca. Atendia as crianças no meu consultório e os procedimentos invasivos eram feitos pela nossa equipe no Hospital Pró-Cardíaco. Não pensava em sair de lá, mas, em 2007, houve uma expansão, que ocasionou o encerramento do departamento pediátrico. Surgiu então a iniciativa de construir um hospital, uma ideia completamente louca. Foi dificílimo conseguir terreno e dinheiro. Até que o nosso patrono, Antônio José de Almeida Carneiro, disse para eu arranjar o local, que ele daria o primeiro cheque. Rodei o Rio de Janeiro inteiro por seis meses até que encontrei um prédio velho em frente ao Hospital Pró-Cardíaco e comprei. Ao lado desse prédio havia outra clínica e todos pensavam que eu ia emendar o terreno. Até que, em uma noite, resolvi pôr o prédio abaixo. Todo mundo ficou doido. Agora o departamento pediátrico sairá do Hospital Pró-Cardíaco e ocupará todo o prédio do Hospital Pro Criança Jutta Batista. É um pouco confuso, né? Uma pessoa tão pequena inventando tanto (risos). Tivemos sorte, pois há quatro anos a Amil comprou o Pró-Cardíaco. Se ela tivesse comprado antes eu não teria conseguido o hospital. É muita responsabilidade, mas Deus sabe o que faz.
Qual a importância desse trabalho de responsabilidade social para você?
Antes dessa entrevista, recebi uma ligação de que um recém-nascido nasceu em um hospital público com um bloqueio no coração. Lá não estão conseguindo nem fazer um eletro. A criança precisa colocar um holter para checar se ela está bloqueada mesmo. Ela já está sendo encaminhada para colocar o holter, depois a mando de volta para o hospital e aguardaremos o resultado. Se eu tenho toda uma estrutura e uma equipe, por que não posso atender a uma criança cardíaca carente? Não imaginei que fosse tomar essa proporção tão grande, mas a população cresceu e não tenho a menor dúvida de que aumentaram também as cardiopatias complexas. No meu consultório, nunca atendemos menos de 30 pacientes por dia. São 150 por semana, no mínimo. É difícil para o governo dar conta disso tudo. Todos nós temos problemas, mas precisamos estar em sintonia. Precisamos de líderes que tenham respeito e ética. Esse trabalho é importante para todos. Estamos aqui de passagem. Quanto mais fizermos para os outros, somos nós que ganhamos. É um projeto ousado, insano, mas é o resultado de um trabalho feito com respeito, determinação e perseverança.
Recentemente o Hospital Pro Criança Jutta Batista foi inaugurado, mas ainda não está funcionando. Quando isso deve acontecer?
O hospital já está pronto e equipado. Sempre tivemos o apoio do governo e de empresários. Recebi ajuda de muita gente. Sem elas não seria possível a construção. No momento, estamos em processo de legalização e de levantamento de capital de giro para não interromper o atendimento que faremos no hospital. Ele não é só destinado a crianças cardíacas carentes. É um hospital pediátrico geral e atenderá convênios e consultas particulares. A intenção é diminuir as filas de espera por atendimento. Formaremos uma equipe que continuará captando recursos para mantermos o padrão que alcançamos. Contarei com os melhores especialistas. Meu sonho é trazer os melhores cirurgiões do Children’s Hospital Medical Center para trabalhar com a equipe. Quanto mais gente boa, melhor. O Hospital Pro Criança Jutta Batista é um caso de sucesso, considerando o padrão, o local e a estrutura.
Você acredita que falta hoje na Medicina a valorização da essência da profissão, o “ajudar o próximo”?
A Medicina é uma profissão muito delicada. Lidar com a doença em crianças é muito difícil. Mas alguém precisa fazer esse trabalho. Em qualquer profissão, é preciso ter responsabilidade. Não acredito em coisas de massa, tudo está ligado ao indivíduo. O ideal é que você trabalhe em uma instituição onde você tenha supervisão, lideranças e requalificação profissional e pessoal, independente da sua religião. Você precisa perceber seus erros e melhorar como ser humano. Se você tem ética, todo o seu entorno melhora. Acredito muito na força daquele que está lá em cima porque sei que a Medicina não é brincadeira.
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