O Brasil ampliou numericamente nos últimos anos a capacidade de formação de médicos especialistas. Em 2019, 53.776 médicos cursavam residência médica (RM) em 4.862 programas oferecidos por 809 instituições credenciadas pelo Ministério da Educação. Os dados são do estudo Demografia Médica no Brasil 2020, fruto de um acordo de cooperação técnica entre a Universidade de São Paulo (USP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM).
De acordo com o estudo, apesar do crescimento quantitativo de médicos em RM no Brasil na última década, esses profissionais permaneceram distribuídos de forma desigual pelo território brasileiro, assim como as instituições e programas que oferecem vagas. A região Sudeste concentra 57,3% dos 53.776 médicos residentes – mais da metade de todo o país. Concentra também mais da metade dos programas autorizados (2.491), oferecidos por 374 instituições. A região Sul concentra 8.640 médicos residentes, que equivalem a 16% do total nacional. Somados, Sudeste e Sul reúnem praticamente três quartos dos residentes do país. A região Nordeste reúne 15,7% do total de médicos residentes e o Centro-Oeste, 7,2%. O Norte tem o menor número de residentes, 1.993 (3,7%).
Na distribuição por unidades da federação, São Paulo concentra 33,9% de todos os médicos residentes, ou seja, aproximadamente um terço do total nacional, seguido por Minas Gerais, com 11,1% dos residentes, Rio de Janeiro, com 10,7%, e Rio Grande do Sul, com 7,3%. Doze das 27 unidades da federação têm menos de 1% do total de residentes do país.
Maiores e menores
Segundo a Demografia Médica no Brasil 2020, dos 53.776 médicos residentes em formação em 2019, 23.134 deles, ou seja, 43%, cursavam programas em quatro especialidades: Clínica Médica (8.233), Pediatria (5.156), Cirurgia Geral (5.136) e Ginecologia e Obstetrícia (4.609).
Já os programas com menor número de residentes são os de Angiologia (4 residentes), Medicina de Tráfego (6), Homeopatia (9), Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (14) e Nutrologia (16).
Em dez anos, aumento de 81% em R1
O estudo também apresentou a evolução numérica de médicos residentes no país, em cada especialidade cursada, de 2010 a 2019. Para isso, foi considerado o número de vagas ocupadas por médicos no primeiro ano de residência (R1). Ou seja, médicos ingressantes, sem contar eventuais desistências ou afastamentos após o início da residência.
Em 2019, 17.350 médicos iniciaram ingressaram como R1. Em 2010, esse número era de 9.563, ou seja, um aumento de 81% no período, com crescimento médio anual de 865 vagas ocupadas – ou de 865 médicos residentes a mais a cada ano. Embora tenha ocorrido essa expansão na formação de médicos especialistas na última década, as vagas de R1 ocupadas a cada ano ainda representam um número menor do que o de médicos graduados no ano anterior. Os CRMs, em 2019, registraram 21.941 novos médicos e foram ofertadas 17.350 vagas de R1, equivalente a 79% dos registros do ano anterior.
Cabe ressaltar ainda que as vagas de RM são disputadas não só pelos recém-formados do sexto ano de Medicina no ano anterior, mas também por médicos formados nos anos anteriores que ainda não cursaram nenhuma RM ou que pretendem obter outro título de especialista.
Medicina de Família em alta
O estudo avaliou, ainda, a evolução anual do número de residentes no primeiro ano (R1) em cada programa/especialidade cursada. Em dez anos, a especialidade que mais expandiu o número de médicos residentes foi a Medicina de Família e Comunidade, que passou de 181 vagas de R1, em 2010, para 1.031 vagas de R1, em 2019, um aumento de 469,6%.
Não ocupadas
O estudo se debruçou sobre o número de médicos cursando RM, que é o número de vagas concretamente preenchidas. Tomando como referência o primeiro ano (R1), mais de um quarto das vagas de RM autorizadas pelo MEC não foi ofertado ou preenchido em 2019.
Assim, o Brasil deixou de formar, em cinco anos, quase 36 mil médicos especialistas, considerando as vagas autorizadas, mas não ocupadas. Além disso, mesmo entre as vagas inicialmente ocupadas, há desistências, afastamentos ou licenças. Dentre os 17.350 médicos que ingressaram em R1 em 2019, 1.160 não continuaram cursando.
A melhor formação do especialista
Para a ginecologista Vera Fonseca, presidente da Comissão de Residência Médica da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro (Sgorj) e atuante na Coordenação da Residência Médica do Nível Central da Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro, está mais que provado que o treinamento em serviço é a melhor forma de um médico tornar-se um especialista e o ideal seria que todos os recém-formados procurassem fazer um programa de residência médica.
“Isso é o que desejamos. Acreditamos que quanto maior o número de especialistas no nosso país, mais poderemos oferecer uma Medicina de melhor qualidade aos pacientes, seja no serviço público ou na saúde suplementar”, considera.
De acordo com a ginecologista, ao escolher um programa de residência, o médico deve considerar algumas características importantes, como a qualidade do serviço, a formação e a disponibilidade dos preceptores e o acesso do paciente ao hospital. A escolha deve ser por aquela instituição que tenha um bom serviço e isso significa, entre alguns fatores, ter como preceptores médicos especialistas.
“Sempre digo que não existe a necessidade de os preceptores serem professores, porque não é essa a tônica do processo. Porém, existe a necessidade de serem médicos especialistas, bem formados, dedicados e que estejam disponíveis a auxiliar o residente no treinamento em serviço. Se o hospital tiver um arsenal tecnológico para ajudar nesse treinamento, melhor ainda. Outra questão que o residente deve sempre levar em consideração é se o hospital realmente recebe pacientes daquela determinada especialidade”, avalia.
Aprendizado afetado
A pandemia de Covid-19 provocou problemas em diversas áreas, inclusive na educação, devido à necessidade de o ensino passar a ser feito remotamente. O aprendizado em Medicina também foi afetado. Vera Fonseca enfatiza que os residentes, que chegam hoje nos programas, passaram por quase dois anos de pandemia e, com certeza, como acadêmicos de Medicina, perderam aulas e treinamento, e alguns não conseguiram frequentar o período de internato.
“Por causa da pandemia, muitos deles tiveram suas formaturas antecipadas. Se formaram, foram trabalhar nas unidades de saúde que tinham pacientes com Covid-19 e nem se prepararam para fazer as provas da resistência médica. Então, a verdade é que os serviços estão recebendo residentes, muitas vezes, sem o completo aprendizado, que eles deveriam ter tido durante a graduação. Todos nós, que trabalhamos com residência médica, devemos ter um olhar mais apurado para esse residente, que está chegando provavelmente com falhas e algumas deficiências, o que não tem jeito. Teremos que cuidar disso na residência médica”, afirma.
Outro fator que a médica destaca é que as próprias residências médicas e os residentes também sofreram nesses quase dois anos de pandemia. Vera Fonseca cita como exemplo as especialidades cirúrgicas. Os hospitais tiveram que suspender as cirurgias eletivas para que os médicos pudessem se dedicar, quase que exclusivamente, ao atendimento dos pacientes com Covid-19.
“Os residentes que necessitavam de treinamento com pacientes, principalmente cirúrgicos e até de algumas especialidades clínicas mais específicas, não tiveram essa possibilidade. O ensino e a aprendizagem dos residentes, nesse momento, ficaram muito a desejar. E, com isso, após a residência, os próprios residentes terão que buscar meios de corrigir essas possíveis falhas que ocorreram”, frisa.
Contexto
Instituída no Brasil em 1977, a residência médica é mundialmente reconhecida como a forma mais adequada – e única, em muitos países – de formação de médicos especialistas. Trata-se de uma modalidade de ensino de pós-graduação destinada a médicos, na forma de curso de especialização, caracterizada por treinamento em serviços sob responsabilidade de instituições de saúde (universitárias ou não), com a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.
Cabe à Comissão Nacional de Residência Médica, vinculada ao MEC, regulamentar e credenciar todos os programas nessa modalidade. Hoje, existem programas de RM autorizados nas 55 especialidades médicas e em 59 áreas de atuação reconhecidas no país. O ingresso em programas de RM credenciados se dá mediante processo seletivo e chamamento público. A duração dos programas varia de dois a cinco anos.
O que considerar?
Para o presidente da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), Vinicius Miola, no momento atual, a residência é o melhor meio para formação de especialistas no Brasil. “O médico focado em fazer uma especialidade de qualidade acaba optando pela residência como meio para atingir esse objetivo. Os cursos de pós-graduação em sua maioria têm carga horária baixa e pouca atividade prática, sendo insuficientes para formação de qualidade. Nesse contexto, a residência é importante para preencher as necessidades de especialidades médicas, mas acredito que cada vez mais o mundo está abrindo muitas possibilidades além da residência para o profissional médico”, considera.
De acordo com Vinicius Miola, hoje, ao escolher uma residência, o médico deve considerar o mercado de trabalho e o futuro da especialidade perante as tecnologias que estão mudando a forma de se praticar a profissão. “Quando saímos da faculdade, em geral, não temos essa visão mais objetiva. Escolhemos por afinidade, o que é importantíssimo, pois afinal precisamos gostar muito da nossa escolha. Porém, acredito que avaliar o mercado de trabalho, o local específico onde se quer viver e entender como a tecnologia pode afetar a sua especialidade nos próximos anos são parâmetros importantes para que, no futuro, não venha a frustração de que aquilo não atende às grandes expectativas que se esperava”, ressalta.
Para Miola, em geral, as residências conseguem prover um bom ambiente de aprendizado. “Porém, as condições são muito heterogêneas. Temos desde serviços nos grandes centros e hospitais universitários que são de excelência, assim como serviços menores que têm menos condições de oferecer determinadas expertises. Essas condições são essenciais para a boa formação do especialista no Brasil”, enfatiza.
O residente também lembra que o preceptor é fundamental para a residência médica, pois ele é o guia das condutas do médico residente. “Na maioria das vezes, o residente chega com um vasto conhecimento teórico, mas sem a vivência prática para colocar as mãos na massa. É essa pessoa que o conduz e ensina os melhores caminhos a tomar. Sabemos que a pressão sobre os médicos residentes é muito grande. Por isso, é necessário que o preceptor traga confiança e tranquilidade para que o residente possa praticar de forma segura os ensinamentos que são passados”, considera.
Opinião do residente
Para o médico que deseja atuar em qualquer especialidade, a residência é parte intrínseca à formação. Em boas residências, o médico desenvolverá diversos atributos nas áreas de assistência, pesquisa e ensino, bem como o contato diário com a especialidade e todo o networking decorrente desse processo. Em uma entrevista especial, conversamos com o médico Glauco Aquino, residente de Oftalmologia na Escola Paulista de Medicina (EPM), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele fala sobre a importância da residência para formação do médico.
DOC – O que leva o médico a escolher uma residência?
Glauco Aquino – Acredito que a escolha de fazer residência seja motivada pelo desejo de complementar a formação tanto técnica/acadêmica como humana e o anseio de aprimorar habilidades dentro de uma área específica, almejando agregar valor à experiência do seu paciente no futuro. Com a infinidade de informações e atualizações na área de Saúde que se tem atualmente e a responsabilidade sobre a vida do paciente que lhe confia sua saúde, é necessária uma carga grande de treinamento para que o médico possa oferecer excelência em seu atendimento, tomando decisões com segurança. Essa experiência é atingida por meio da residência médica.
DOC – O que o médico deve considerar ao escolher uma residência?
GA – É claro que existem diversas particularidades em cada setor da Medicina, de acordo com as necessidades do dia a dia da especialidade. Entretanto, há certos aspectos que são comuns a boas residências. Dentre eles, a presença de exímios professores que de fato estão ali com a preocupação de ensinar os futuros especialistas é, de longe, a mais importante, aliada à diversidade de situações e pacientes que o médico em formação é exposto na prática. Em segundo lugar, penso que o estímulo à interpretação e à produção científica, colocando o especializando em contato frequente com a academia, é essencial para criar um senso de discernimento e de rigor científico, que será fundamental para embasar as condutas no seu futuro profissional e para garantir a segurança do paciente.
DOC – Como você avalia sua experiência como residente?
GA – Minha experiência como residente de Oftalmologia na EPM tem sido fantástica. O serviço é excepcional em todos os quesitos. Entre os pontos fortes, acredito que se destacam a proximidade com os maiores experts de todas as subespecialidades da Oftalmologia, o estímulo ao rigor e à produção científica e a experiência do maior pronto socorro aberto 24 horas da região. É claro que, com tantas oportunidades, há a contrapartida de ter uma carga horária mais pesada que outras residências de Oftalmologia. Ademais, acima de todos os aspectos citados, acredito que o maior diferencial seja a preocupação incessante de formar oftalmologistas éticos, competentes e seguros para atender a população, tanto no aspecto profissional/técnico, como no âmbito humano, mantendo um ambiente de amizade e proximidade entre todos os envolvidos. Esse espírito é o que mantém o serviço como o centro brasileiro padrão-ouro, de maior referência em Oftalmologia.
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