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Os desafios dos novos tempos na medicina

Por:

Ana Paula Costa

- 10/11/2022

A Revista DOC convidou para uma entrevista exclusiva o médico José Hiran Gallo, que atua há mais de 40 anos e hoje é o atual presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Na conversa, além da readaptação dos médicos após os desafios impostos pela pandemia iniciada em 2020, o presidente também discutiu as médias de remuneração atuais, a importância da educação continuada para a profissão e reforçou o compromisso do CFM em promover e manter a qualidade da assistência médica no Brasil. Confira a seguir:

DOC – Em outubro, comemoramos o Dia do Médico. Nesse momento, o que a classe médica tem a celebrar, principalmente considerando que já passamos pelas fases mais complicadas da pandemia de Covid-19?

José Hiran Gallo – Durante a pandemia, enfrentamos momentos difíceis, com uma doença desconhecida, que rapidamente se espalhou por todo o planeta e matou mais de 680 mil brasileiros, dos quais quase mil médicos. O que ficou desse momento tão doloroso da história mundial foi a certeza de que, com união e senso de trabalho coletivo, podemos vencer as maiores adversidades.

Nesse período, todos se uniram para vencer a pandemia. O Legislativo aprovou as normas necessárias; o Executivo, nas três esferas de gestão, fez com que medicamentos e vacinas chegassem à população; os empresários, por meio dos laboratórios, investiram em pesquisa para desenvolver novas tecnologias capazes de fazer frente ao vírus; os médicos e as equipes de saúde deram o máximo na linha de frente do atendimento; e os brasileiros seguiram as orientações repassadas pelas autoridades sanitárias. Acredito que temos de celebrar as vidas que conseguimos salvar e a centralidade que a Medicina passou a ocupar.

O aumento no número de leitos de UTI e a implantação do programa Médicos pelo Brasil são medidas que devem ser celebradas. Agora, quando estamos voltando à normalidade, temos que continuar vigilantes e chamar a atenção para as condições de atendimento e de trabalho nos postos de saúde, clínicas e hospitais. Infelizmente, essas condições precisam ser melhoradas, em especial na rede pública. É preciso que seja garantido o acesso a consultas, exames, procedimentos e cirurgias com qualidade, conforme a necessidade da população. Por outro lado, precisamos valorizar os profissionais da Medicina e de outras categorias com remuneração digna e justa, em função de seu preparo, de sua capacidade técnica e de seu desprendimento. Em síntese, isso tudo demonstra a necessidade de se investir em Saúde no Brasil.

DOC – Em seu discurso de posse na presidência do CFM, você citou que o Conselho se empenharia para solucionar os desafios atuais que se impõem aos médicos. Quais são considerados atualmente os maiores desafios?

JHG – Existem vários desafios em diferentes frentes, sempre tendo como desafio maior a continuidade do bom atendimento da população, com preparo técnico e ético em sintonia com a chegada de novas tecnologias. Além disso, é preciso reforçar junto à população a percepção de que o médico é o profissional capacitado e autorizado legalmente para fazer o diagnóstico de doenças e a prescrição de tratamentos.

Na interação com os gestores públicos e privados, temos que trabalhar pela valorização do papel do médico, com a oferta de honorários adequados e o respeito à autonomia dos profissionais. Também temos o desafio de estimular a qualificação da infraestrutura de atendimento e de trabalho, o que amplia as possibilidades do exercício da Medicina. Finalmente, não podemos esquecer das frentes de luta no campo do ensino médico, no qual o CFM incansavelmente tem atuado contra a abertura de instituições em locais sem condições para a boa formação na área.

DOC – Outro ponto de seu discurso foi que é preciso buscar na ciência as melhores evidências para a prática médica. Qual a sua visão a respeito da necessidade de os médicos se adaptarem aos novos tempos, em que a tecnologia se faz cada vez mais presente?

JHG – É preciso entender que a tecnologia, por melhor que seja, nunca substituirá o contato direto entre o médico e o paciente. Temos de ter a capacidade de usar as novas tecnologias, mas sem perder de vista que a prática médica pressupõe essa relação direta, que deve ser preservada e sempre valorizada. Para que isso seja mantido, há resoluções recentes do CFM, como as que regulamentaram a cirurgia robótica e a Telemedicina. Ambas são exemplos desse esforço de acompanhar os avanços tecnológicos, mas sabendo que uma boa anamnese continua sendo fundamental para um bom desfecho clínico.

Vamos nos deter sobre as normas do atendimento médico à distância. A Telemedicina no Brasil, como forma de acesso a serviços médicos mediados por tecnologias e de comunicação, deve ser praticada com base em rígidos parâmetros éticos, técnicos e legais. Com norma aprovada pelo CFM, foi aberta a porta da integralidade da assistência para milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Por outro lado, essa regulamentação confere segurança, privacidade, confidencialidade e integridade dos dados dos pacientes. Durante a pandemia, esse método demonstrou sua capacidade de levar assistência às cidades do interior e beneficiar também os grandes centros, reduzindo o estrangulamento causado pela demanda e pela migração de pacientes em busca de tratamento.

Contudo, o médico deve utilizar a Telemedicina ciente de sua responsabilidade legal, avaliando informações recebidas e qualificadas, dentro de protocolos rígidos de segurança digital e suficientes para a finalidade proposta. Um ponto importante e que deve ser ressaltado: a consulta médica presencial permanece como padrão-ouro, ou seja, a Telemedicina deve ser entendida como ato complementar à assistência médica.

DOC – De que maneira o CFM vem se adaptando e incentivando os médicos a se adaptarem aos novos tempos?

JHG – O CFM tem como missão constante levar informações de qualidade para os médicos brasileiros. Isso é fundamental para que nossos profissionais estejam sempre atualizados e capacitados para o pleno exercício da Medicina. Nossa autarquia incentiva que todos atuem de acordo com os princípios e as diretrizes da ética médica, sem fazer uso de sensacionalismo, de notícias falsas e com respeito à proteção do sigilo.

Por meio de suas normas, o CFM tem incentivado os médicos a usarem de forma correta as redes sociais, sem a exposição do “antes e depois” de pacientes, por exemplo. Debatemos com médicos de todo o país, por meio de uma enquete e de conversas com as sociedades médicas, sindicatos e CRMs, alterações dessa resolução. O novo texto está ainda em elaboração, mas estou certo de que trará avanços, sem abrir mão da ética médica. Além disso, no orçamento do CFM, há recursos destinados à educação médica continuada, o que tem permitido aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) promoverem cursos, jornadas e outros eventos para os médicos brasileiros. Além de os atualizarem sobre as evidências mais recentes, muitas dessas atividades versam sobre o uso ético das redes sociais, que é tema central nos tempos atuais.

Dentro dessa linha de disseminar informações confiáveis, o CFM se prepara para lançar novos programas no nosso canal no Spotify. Nesse espaço, os interessados encontrarão dois programas com perfis específicos: CFM e você, voltado para a população em geral; e Mundo médico, destinado a debater questões que afetam o dia a dia da categoria e com foco no profissional da Medicina. No que diz respeito à adaptação aos novos tempos, regulamentamos a Telemedicina (resolução 2.314/22) e a cirurgia robótica (resolução 2.311/22), entre outras medidas.

DOC – Em relação à remuneração médica, nos últimos anos, ela vem sendo menor do que décadas atrás? Por que houve essa redução?

JHG – Infelizmente, a remuneração dos médicos vem caindo nos últimos anos. Levantamento feito recentemente pelo CFM constatou que a média salarial oferecida em concursos públicos para médicos é de R$5 mil para uma jornada de 40 horas semanais ou de R$2,7 mil por uma dedicação de 20 horas por semana. Esses valores estão muito aquém do piso salarial pleiteado pela Federação Nacional dos Médicos (Fenam) para 2022, que é de R$17.742,78 para 20 horas semanais de trabalho. Também não condizem com a responsabilidade do médico, que é salvar vidas.

Os baixos salários empurram o médico para jornadas exaustivas, como demonstrou o estudo Demografia médica. De acordo com esse trabalho, apenas 22% dos médicos tinham apenas um vínculo empregatício. A maioria tinha entre dois (29,5%) a três vínculos (24,3%), porém, 5,4% tinham mais de seis vínculos, 12% tinham quatro empregos e 6,8%, cinco vínculos. A grande maioria (51,5%) trabalha nos setores público e privado, sendo que 21,6% trabalham apenas no público e 26,9%, só na iniciativa privada. A pesquisa ainda demonstrou que a carga horária também é exaustiva: 75,5% trabalham mais de 40 horas semanais, sendo que 43,1% labutam de 40 a 60 horas; 15,5% de 60 a 80 horas; e 16,9%, mais de 80 horas.

Não há como negar que essa sobrecarga se deve a um achatamento salarial, que está levando o médico a ter múltiplos vínculos empregatícios e a trabalhar até o limite da exaustão. Com isso, estão cada dia mais estressados e sofrendo de burnout.

Infográfico

Distribuição de médicos segundo número de vínculos de trabalho

  • Apenas um vínculo empregatício – 22%
  • Dois vínculos empregatícios – 29,5%
  • Três vínculos empregatícios – 24,3%
  • Quatro vínculos empregatícios – 12%
  • Cinco vínculos empregatícios – 6,8%
  • Seis ou mais vínculos empregatícios – 5,4%

Distribuição de médicos por setor de trabalho

  • Apenas no setor público – 21,6%
  • Apenas no setor privado – 26,9%
  • Setores público e privado – 51,5%

Distribuição de médicos segundo carga horária de trabalho

  • Menos de 40 horas semanais – 24,6%
  • De 40-60 horas semanais – 43,1%
  • De 60-80 horas semanais – 15,5%
  • Mais de 80 horas semanais – 16,9%

Fonte: Demografia médica 2020

DOC – Em relação à presença feminina, as mulheres compõem hoje quase metade da classe médica (46,6%) e a tendência é que nos próximos anos elas sejam a maioria dos profissionais. Qual a sua visão sobre esse movimento do crescimento feminino na Medicina?

JHG – A tendência mundial é que as mulheres sejam maioria na Medicina. De acordo com o Demografia médica 2020, 57,5% dos novos estudantes de Medicina são mulheres, o que significa que em breve elas serão maioria. A feminização das profissões é uma tendência que ocorre não só na Medicina, como em outras profissões liberais.

Alguns estudos apontam que a feminização da Medicina pode trazer vantagens para os sistemas de saúde, pois as mulheres médicas se adequam melhor ao funcionamento da atenção primária e das equipes multiprofissionais; estariam mais propensas a harmonizar a relação médico-paciente; adotam estilos democráticos de comunicação; promovem relacionamentos colaborativos; discutem mais os tratamentos e envolvem os pacientes em tomadas de decisão; têm uma abordagem mais orientada para prevenção; e são menos inclinadas a incorporar tecnologias desnecessárias.

Por outro lado, as mulheres médicas costumam trabalhar em um número menor de horas, com tendência a uma jornada de trabalho parcial, fazem menos plantões e são menos propensas a migrações territoriais. No Brasil, as médicas recebem menor remuneração; têm número de vínculos e carga horária equivalentes aos homens; e são minoria em 38 das 53 especialidades, o que aponta para desigualdades de gênero no exercício da Medicina no país. Esses números mostram que precisamos trabalhar para que as mulheres médicas sejam mais valorizadas e possam exercer a Medicina em igualdade de condições com os homens.

DOC – Como o jovem médico encontra o mercado hoje? Em seu discurso de posse, você destacou a necessidade do apoio e de lealdade entre médicos. Pensando nisso, como os mais experientes podem ajudar os mais jovens a se estabelecerem?

JHG – O jovem médico encontra hoje um mercado muito mais competitivo do que eu enfrentei, por exemplo. Porém, ao mesmo tempo em que há mais profissionais se formando anualmente, há uma abertura de novas frentes de trabalho e uma procura maior por serviços médicos. Ainda não estamos em um mercado saturado, apesar de esta ser uma tendência.

Eu, como um médico mais experiente, aconselho que os mais jovens exerçam a Medicina com amor e ética. Que façam anamneses bem-feitas, vejam o paciente como ser humano, mantenham-se sempre atualizados e procurem sempre dar o seu melhor. Agindo assim, estarão seguindo os ensinamentos hipocráticos de sempre procurar fazer o bem e, com certeza, garantindo seu espaço no mercado de trabalho.

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