Durante a faculdade, muitos médicos já pensam em ser residentes e por qual especialidade seguir. Mas qual é história da residência? Como é o cenário da residência hoje no Brasil? Que desafios ela enfrenta?
Entrar para a residência médica é um desejo natural de muitos médicos recém-graduados e que buscam se tornar especialistas. Estabelecida por meio do decreto 80.281, de 1977, a residência se estabeleceu como um importante processo de formação de médicos especialistas no país. Contudo, hoje, se depara com diversos desafios, que vão desde a distribuição regional desigual de programas e vagas até a tentativa de garantir uma educação realmente de qualidade.
Para a residente em Pediatria Ketlin Chehab, as oportunidades e todos os desafios da residência médica têm sido surpreendentes.
“Os aspectos mais gratificantes têm sido aprender com os meus preceptores e com a literatura e poder aplicar isso diretamente todos os dias. O programa de residência médica na formação do profissional de Saúde é essencial, com total importância, porque, com nenhuma outra forma de ensino, é possível ficar tão imerso”, afirma.
Painel nacional De acordo com o Painel de Residência Médica, do Ministério da Educação (MEC), atualmente, há um total de 7.417 programas distribuídos em 1.014 instituições pelo país. No entanto, a distribuição das vagas autorizadas não é igual para todos os estados. No total, são 70.047 vagas autorizadas, tendo São Paulo como líder (22.178 vagas), seguido por Minas Gerais (7.255) e Rio de Janeiro (7.220). Entre as vagas autorizadas, hoje apenas 46.610 estão efetivamente ocupadas – o equivalente a 66,5% do total
Histórico no Brasil
A história da residência médica no Brasil passa por avanços e desafios. A Revista DOC conversou com o cirurgião vascular Adnan Neser, um dos primeiros presidentes da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR),que contou um pouco da trajetória da residência médica até os dias atuais.
Década de 1940 A primeira residência médica criada no Brasil foi a do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e, anos depois, a do Hospital dos Servidores Públicos do Rio de Janeiro. “Seguindo o modelo implantado na John Hopkins University entre o final do século XIX e o início do XX, a primeira residência criada no Brasil foi a da cadeira de Ortopedia e Traumatologia, em 1945, na USP. Alguns anos depois, criou-se também a do Hospital dos Servidores, no Rio”, explica Neser. |
Década de 1960 O modelo de residência médica se expandiu para outros hospitais e escolas médicas, principalmente públicas. Em 1966, foi criado o I Congresso Nacional de Médicos Residentes, que culminou na fundação da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR) no ano seguinte, estabelecendo uma estrutura para regulamentar a residência médica no país. |
Décadas de 1970 e 1980 A década de 1970 foi marcada por movimentos significativos, incluindo a primeira greve de médicos residentes em 1975, que levou à publicação do decreto 80.281, em 1977. Esse decreto estabeleceu a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), posteriormente regulamentada pela lei 6.932, de 1981, definindo a residência médica como uma modalidade de pós-graduação lato sensu, reconhecida por ser um treinamento em serviço sob a orientação de profissionais médicos qualificados. “Além de tudo, estabeleceu a bolsa de estudos, limitou a atividade em 60 horas semanais em 48 semanas, totalizando 2.880 horas anuais e reservando quatro semanas para férias obrigatórias e ininterruptas, contribuição previdenciária e, pela primeira vez na história, concessão do título de especialista a quem fosse promovido por avaliação e tivesse cumprido plenamente a carga horária”, destaca Neser. |
2015 A Comissão Mista de Especialidades (formada pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, pela CNRM e pela Associação Médica Brasileira – AMB) incumbiu CNRM de elaborar, junto com as sociedades de especialidades médicas, as matrizes de competências das especialidades. A iniciativa foi oficializada pelo decreto 8.516, de 2015. Esse trabalho começou em 2016, cobrindo 55 especialidades e 59 áreas de atuação, e foi concluído em 2023 com a publicação de todas as matrizes de competência no Diário Oficial ao longo dos anos. Com isso, ficou oficialmente definido o que o médico de cada especialidade ou área de atuação precisa aprender a cada ano de sua residência. |
Atualmente Ao longo de seus mais de 40 anos de existência, a CNRM tem sido responsável pela regulação e supervisão dos Programas de Residência Médica (PRMs) em todo o país, promovendo a qualidade e ampliando as especialidades médicas. “O avanço numérico e na qualidade dos programas de residência permite que haja progresso permanente na formação de especialistas com qualidade, simplesmente por ser a melhor maneira de formar profissionais, propiciando um atendimento mais adequado à população”, enfatiza Neser. |
E o futuro? Para a residente Ketlin, o aumento do número de faculdades de Medicina tornará a residência cada vez mais concorrida. “Acredito que o número de residências médicas não aumentará, mas a concorrência aumentará bastante. Acredito que o futuro da residência talvez seja de valorização, que o profissional especialista será cada vez mais valorizado exatamente pelo número excessivo de profissionais generalistas”, reflete. Adnan Neser alerta que a prioridade deve ser a melhor formação e a qualificação dos especialistas e que o crescimento no número de faculdades de Medicina pode trazer benefícios econômicos substanciais para os investidores do setor, porém suscita preocupações sobre seu impacto na saúde pública. “Atualmente, a maior preocupação é com o número de escolas médicas, beirando a cifra de 400 e com mais 150 em análise, o que elevará o número de egressos dos cursos de 35 mil para 50 mil em pouco tempo. Imagina-se que o Brasil atingirá mais de 1 milhão de médicos até 2030. Como a maior parte das faculdades que pleiteiam a autorização são particulares, calcula-se que está se tratando de um mercado de R$1 bilhão a R$2 bilhões. Um avanço econômico para o investidor da área, mas infelizmente em detrimento da saúde pública”, lamenta |
Decreto 11.999/2024
Em 17 de abril, foi publicado o decreto 11.999/2024, que causou polêmica. A lei estabelece novas regras para o funcionamento da CNRM e muda as funções de regulação, supervisão e avaliação de programas de residência médica e das instituições que os ofertem. Entidades médicas estão preocupadas com as mudanças propostas pelo decreto, que põe em risco a qualidade da formação dos futuros especialistas no país.
“O decreto 11.999/2024, infelizmente, abalou a confiança dos Ministérios da Educação e da Saúde e visa a aumentar rapidamente o número de programas de residência, sem a devida qualificação, para atender as regiões mais remotas e carentes. Ninguém é contra oferecer saúde de qualidade a todos indistintamente, porém de forma segura e eficaz, com profissionais bem formados e capacitados”, defende Neser.
O decreto provocou repúdio nas entidades médicas, preceptores e residentes em todo o país, sendo considerado um grande risco para a residência médica. A principal crítica é que ele foi implementado sem a devida qualificação ou preparação das instituições, podendo comprometer a formação dos residentes e, consequentemente, a qualidade dos atendimentos médicos.
“O avanço numérico e na qualidade dos programas de residência permite que haja progresso permanente na formação de especialistas com qualidade, simplesmente por ser a melhor maneira de formar profissionais, propiciando um atendimento mais adequado à população”
Adnan Neser, ex-presidente da ANMR
“O programa de residência médica na formação do profissional de saúde é essencial, tem total importância, porque, com nenhuma outra forma de ensino, é possível ficar tão imerso”
Ketlin Chehab, residente