A transfusão de sangue, entre pessoas com tipos sanguíneos compatíveis, pode ser necessária em diversos casos, como durante um quadro de anemia profunda, hemorragia grave e também após grandes cirurgias. Nesses casos, mesmo com risco de morte, alguns religiosos recusam, total ou parcialmente, tratamentos que envolvam o método. Assim, surge um dilema: até que ponto o médico deve precisar do consentimento do paciente ou da família para realizar esses procedimentos?
Não é raro ocorrer, no dia a dia de clínicas e hospitais, o aparente conflito entre a crença religiosa, os Testemunhas de Jeová, por exemplo, e a necessidade/direito do médico de adotar conduta adequada para salvaguardar a vida do paciente. Por isso, é preciso entender melhor como essa relação ocorre na prática, além de quais são os direitos e deveres das partes envolvidas.
No Brasil, a liberdade de crença religiosa é garantida pela Constituição Federal e integra os direitos fundamentais do cidadão, previstos no artigo 5º do documento. Já no âmbito ético, o Código de Ética Médica dispõe que é vedado ao profissional:
- 24 – “Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”
- 31 – Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Nos últimos anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou diretrizes que estabelecem parâmetros para resguardar os médicos ao lidarem com essas situações. Com base nisso, preparamos um guia de atendimento a esse público, que oferece garantias legais e resulta em uma prática médica mais segura. Confira!
1. Analise todas as alternativas disponíveis
Segundo a Recomendação CFM 01/2016, “a conduta do médico já não pode limitar-se à constatação de risco de morte para transfundir sangue compulsoriamente, mas precisa levar em consideração as recentes alternativas disponíveis de tratamento ou a possibilidade de transferência para equipes com profissionais treinados em tratamentos através de substitutos do sangue”.
2. Seja claro com o paciente
Levando em consideração o princípio do consentimento informado, esclareça ao paciente sobre as alternativas disponíveis, incluindo diagnóstico e prognóstico. Desse modo, ele pode tomar a decisão sobre que tratamento julga como o mais apropriado para seu caso. Lembre-se: a responsabilidade do médico é de meio e não de resultado. Por isso, este último depende, dentre outros fatores, da escolha consciente de tratamento feita pelo paciente.
3. Registre a decisão no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
É importante registrar, detalhadamente, a decisão do paciente que recusa transfusão de sangue. Para isso, existe o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme a Recomendação CFM 01/2016. Termos flexíveis, contendo o protocolo que será adotado, riscos envolvidos e as decisões do paciente constituem uma prática segura. Também deve-se permitir que o paciente faça observações, inserções e exclusões no documento.
4. Registre no prontuário
É importante o médico registrar as decisões e a evolução do tratamento escolhido também no prontuário, a fim de comprovar que a atuação foi norteada pela decisão do paciente. Se ele fornecer um documento com diretivas antecipadas sobre transfusão de sangue por exemplo, esse deve ser unido ao prontuário, visando proteger o profissional. O objetivo é proporcionar ao paciente a oportunidade de registrar sua vontade sobre tratamentos, sobretudo quando “estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Diante de eventual pressão de familiares contrários ao desejo do paciente, as diretivas antecipadas devem prevalecer. (Resolução CFM 1.995/2012).
5. Conferencie, promova junta médica, transfira o paciente
É prudente consultar médicos experientes em tratamentos sem sangue a fim de obter-se uma segunda opinião. Contudo, caso o profissional se recuse a praticar atos com os quais não concorda, em respeito à sua autonomia profissional, ele pode “sempre que possível encaminhar [o paciente] para outro colega” (Resolução CFM 2.144/2016 e Recomendação CFM 01/16). Logo, caso o médico não concorde com a decisão do paciente, é recomendável e permitido transferir o paciente o mais breve possível para outro profissional que aceite tratá-lo sem sangue.