Angelita Habr-Gama é cirurgiã, cientista, educadora e, acima de tudo, uma mulher à frente de seu tempo. Graduada em 1957 pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na qual conquistou os títulos de doutora e de livre-docente e mantém-se professora titular emérita de Cirurgia, com 206 artigos científicos publicados em revistas internacionais indexadas no PubMed, a especialista é membro honorário da American Surgical Association, do American College of Surgeons, da European Surgical Association, das Sociedades de Coloproctologia do Brasil, do Chile, do Paraguai e do Equador, da Associação Argentina de Cirurgia, da Academia Nacional de Medicina da Argentina e das principais sociedades internacionais ligadas a sua especialidade.
Conhecida por seu talento e suas conquistas, Angelita criou, na FMUSP a primeira disciplina de Coloproctologia em uma universidade brasileira. Recebeu, também, numerosas homenagens e honrarias, entre as quais destacam-se: Prêmio Conrado Wessel de Medicina em 2010; Troféu Guerreiro da Educação – Professor Emérito de 2011 do Centro Integrado Empresa -Escola (CIEE) e do jornal O Estado de São Paulo; e Personalidade de Destaque, do Prêmio Octavio Frias de Oliveira, outorgado pelo ICESP, em 2014.
Diante de toda discussão recentemente evidenciada pela mídia e pela necessidade social de igualdade de gêneros, a conversamos com Angelita para saber um pouco sobre sua relação com a Medicina e com o feminismo. Como foi ser estudante de Medicina em uma época em que isso não era comum para as mulheres? E como percebe o cenário, atualmente? Houve mudanças nesse mercado majoritariamente masculino em relação ao passado? Além disso, a especialista conta um pouco sobre sua história de vida, sua infância e o início da carreira. Confira!
Para começar, conte um pouco sobre sua infância e juventude. Como foi crescer na Ilha de Marajó? Como foi para você e sua família se estruturarem no Pará, vindos do Líbano?
Meus pais, libaneses, chegaram ao Brasil no começo do século XX e se estabeleceram na Ilha de Marajó (PA), como comerciantes. Crescemos – eu e mais cinco irmãos – em um vilarejo chamado Cachoeira do Arari, mas a minha irmã caçula nasceu em São Paulo. Meu pai, de família culta, entendeu que o ensino em Cachoeira do Arari era precário e que os filhos necessitariam de uma educação mais qualificada. Ao mesmo tempo, um de meus irmãos, com apendicite supurada, faleceu sem ter oportunidade de conseguir atendimento médico adequado. Meus pais concluíram, então, que seria melhor nos mudarmos para Belém (PA), onde permanecemos por pouco tempo. Em 1939, deixamos a capital paraense e nos mudamos para São Paulo. Então, nos estabelecemos na Vila Mariana, onde meus pais constituíram um pequeno comércio – um armazém de secos e molhados.
Quando você soube que queria fazer Medicina? Houve apoio de sua família?
Realizei toda minha formação em instituições públicas. Completei o curso primário no Grupo Escolar Marechal Floriano, na Vila Mariana. Realizei o ensino médio na Escola Caetano de Campos e no Colégio Estadual Presidente Roosevelt. Não tinha certeza sobre minha vocação, sobre qual carreira seguir. Alguns amigos se encaminhavam para Medicina e me entusiasmei para prestar o dificílimo vestibular na Universidade de São Paulo (USP). Meus pais resistiram, no primeiro momento, pois esperavam que eu seguisse o magistério, a exemplo de minhas duas irmãs mais velhas e da tradição de minhas tias paternas – professoras de Inglês e Francês em Beirute. Insisti e prestei o vestibular. Eram mais de 600 inscritos para 80 vagas. Passei em oitavo lugar para meu orgulho e de minha família, pois tínhamos consciência da dificuldade que era o ingresso na Faculdade de Medicina da USP, como até hoje o é, por ser a mais concorrida, procurada, exigente e rigorosa, além de ser a mais adequada às posses de meus pais, por ser gratuita.
Como foi tornar-se uma médica, cirurgiã, nascida no Pará? Você enfrentou preconceitos?
Em nenhum momento, durante toda minha formação escolar, os paulistas, e em particular os paulistanos, manifestaram sentimento bairrista ou qualquer discriminação pelo fato de uma colega de escola ou profissão ter nascido em outro estado. Aliás, em nossa turma do curso médico, formaram-se muitos colegas de vários países latino-americanos, em decorrência da convenção assinada pelo Ministério de Educação do Brasil com os países vizinhos. Todos eles, excelentes alunos, foram sempre muito bem aceitos, assim como os colegas brasileiros nascidos em outros estados. Enfrentei, entretanto, algumas dificuldades inerentes à escolha da profissão, já que o acesso às faculdades, naquele momento, era voltado prioritariamente para alunos do gênero masculino.
Então, em algum momento de sua carreira, você percebeu que ser mulher lhe trouxe algum transtorno? Em ambientes médicos, alguma vez, isso foi um problema?
Não posso dizer que tenha trazido transtorno. Trouxe a necessidade de me adaptar a um meio em que tudo era voltado para os homens: o tamanho dos uniformes – grandes – tínhamos que adaptar para o nosso porte; o vestiário, que não era disponível para as médicas, foi um obstáculo solucionado após sermos aceitas, como hóspedes, no vestiário das enfermeiras. Mas nada que foi um problema real ou que atrapalhou a carreira.
Houve algum episódio de resistência por causa dos pacientes por você ser uma mulher?
Não houve resistência. Às vezes, causava alguma estranheza e cheguei a ouvir, no começo da carreira: “Quando chega o médico?”.
Qual é o cenário atual de sua especialidade? Há um equilíbrio maior entre o número de profissionais homens e mulheres?
Havia desequilíbrio numérico entre os gêneros, pois constituíamos menos de 10% dos alunos, quando ingressei na faculdade. Atualmente, porém, o número de ingressos é igual para os dois gêneros. Reconheço que o sucesso alcançado por mim como profissional e especialista em Coloproctologia tem influído no constante acréscimo proporcional de médicas que se destinam a essa área.
Você teve alguma inspiração em sua carreira?
Vários de meus mestres serviram de inspiração. Destaco o professor Alipio Correa Netto, notável cirurgião e ser humano exemplar, bem como Antonio de Barros Ulhoa Cintra e Arrigo Raia – todos excelentes médicos, verdadeiros paradigmas, muito dedicados à profissão e com acentuada preocupação universitária, promotores do progresso do conhecimento e da organização do ensino universitário.
Quais foram suas maiores conquistas profissionais?
Sou feliz por ter meu trabalho reconhecido no ambiente científico e na sociedade, como um todo. Recebi numerosas homenagens e prêmios ao longo da vida – confirmando o acerto que fiz na escolha da profissão. Conquistei os títulos de membro honorário das mais importantes sociedades científicas internacionais, como a American Surgical Association, entidade sesquicentenária dos Estados Unidos, na qual fui a primeira mulher latino-americana a receber tal título; o American College of Surgeons; a American Society of Colon and Rectal Surgeons; o Royal College of Surgeons (Inglaterra) e mais recentemente o da American Society of Radiation Oncology, entre outras; e no Brasil, o da Sociedade Brasileira de Coloproctologia. Uma das conquistas que considero de grande relevância em minha atividade profissional é a utilização do protocolo científico que, em conjunto com a minha equipe de trabalho e de pesquisa, denominei Watch and Wait (em Português, Observar e Esperar). Essa estratégia, que iniciamos em 1991, preconiza o uso da rádio e da quimioterapia neoadjuvante para tratar o câncer do reto. Verificamos que em muitos doentes com câncer de reto inicialmente tratados com as referidas terapêuticas e, em seguida, operados, como classicamente era feito, ocorria a regressão completa do tumor e, com a cirurgia, não se detectava mais lesão no segmento ressecado. Foi então que decidimos não operar de imediato quando, após a reavaliação do resultado do tratamento com rádio e quimioterapia, não persistiam sinais clínicos, endoscópicos e imagenológicos do tumor com a aplicação do protocolo Watch and Wait. Fazemos seguimento rigoroso dos doentes, informando-os da chance de reaparecimento do tumor e de que, se isso ocorrer, a operação deverá ser realizada. Após muita resistência da comunidade médica em geral, notamos com satisfação que, atualmente, renomados centros internacionais dos Estados Unidos e Europa – aliás, do mundo todo – adotaram essa estratégia. O referido protocolo é uma verdadeira mudança de paradigma no tratamento do câncer do reto.
O que a Medicina representa em sua vida? Como você se sente hoje em relação a sua profissão? Ainda há espaço para novos planos e conquistas?
O exercício da Medicina é meu ideal de vida e, assim sendo, sinto-me plenamente realizada. Porém, sempre há muito a fazer e, por isso, continuo me dedicando intensamente e com grande entusiasmo nas numerosas atividades médicas que sempre me estimularam.
Como é sua rotina externa à profissão? Como você se distrai e relaxa fora das salas de cirurgias e do consultório?
Gosto muito de cinema, então, procuro colocá-lo em minha rotina pelo menos uma vez por semana. Adoro ler, atividade que acho muito relaxante e que mantenho ao longo da vida. Leio artigos científicos para me manter atualizada em minha atividade profissional, bem como assuntos diversos da literatura. Mais que tudo, dedico parte do tempo a transmitir conhecimento científico atinente a minha especialidade, a Coloproctologia, por meio de conferências e palestras, assim como escrevendo artigos científicos em revistas internacionais de maior destaque e impacto científico. Atualmente, voltei a praticar xadrez e a fazer curso de arte, como hobby.
Você se considera uma mulher feminista? Acha que esse movimento é importante? Considera-se uma inspiração para outras mulheres dentro de sua profissão?
Embora eu nunca tenha participado ativamente do chamado Movimento Feminista, reconheço suas importantes repercussões, sobretudo na segunda metade do século XX. O resultado dessas conquistas foi muito favorável à condição feminina, promovendo uma quase total igualdade de direitos. Indubitavelmente, ainda resta muito a conquistar na busca da absoluta equiparação das oportunidades entre ambos os gêneros, uma vez que, em grande parte do mundo, a mulher recebe cerca de 20% (ou mais) a menos do que o sexo masculino nas mesmas funções.
Hoje, muito se fala em empoderamento feminino. Como você vê esse movimento? As mulheres já conquistaram um espaço importante no mercado de trabalho ou ainda é preciso lutar mais?
Há muito ainda a progredir. No entanto, as ações das mulheres já conquistaram muito e estão em igualdade de condições com os homens em quase todas as profissões. Seu trabalho é reconhecido e elas assumem posições até há bem pouco tempo ocupadas exclusivamente por homens. É oportuno salientar que vários fatores têm possibilitado significativas mudanças que vêm ocorrendo na vida social e são frutos das conquistas femininas. O progresso na igualdade entre os gêneros se manifesta não só nas atividades profissionais. A título de exemplo, destaco a importantíssima repercussão criada pela redistribuição de funções equilibrada entre os gêneros na vivência familiar, manifestada na atenção com os filhos e na divisão das atividades domésticas em igualdade com os homens, que realizam, hoje, as tarefas antigamente destinadas exclusivamente às mulheres. Ao lado disso, estas passaram a se responsabilizar por parte do orçamento familiar como fruto de seu trabalho nas diferentes atividades humanas. Isso se verifica na política, nas artes, na educação, nas administrações pública e privada, na literatura, na Medicina e em outras áreas.
O que você gostaria de sugerir para os jovens médicos que começam agora na profissão?
Penso que todos desejamos um mundo em que as oportunidades estejam abertas para todos, homens e mulheres. O sucesso em qualquer profissão exige dedicação, esforço e plena convicção de sua escolha. Como ouvi de um de meus mestres: “a Medicina é para ser exercida ou abandonada”. Suor é a chave do sucesso! Cabe aos profissionais da Saúde, como a todos os cidadãos, dedicarem esforços para que as pessoas possam viver livres de violência, e propugnar que o Estado cumpra com suas obrigações quanto ao respeito e à proteção dos direitos humanos de todos: homens, mulheres e crianças. Cabe ao Estado moderno planejar e executar ações efetivas na Educação, na Saúde, na preservação dos direitos do indivíduo e na distribuição de renda, por meio de políticas democráticas e programas adequadamente elaborados, visando à realização do ser humano. Essa foi a proposta do grande pensador
sir Karl Popper (1902-1994), que elaborou, em 1945, o grandioso e democrático projeto sociológico da “engenharia social gradativa”, que tem como meta a absoluta igualdade de direitos e responsabilidades dos seres humanos.
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